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Cupido fala todas as línguas, inclusive Química !


Cientistas estão começando a vislumbrar algum significado para o amor romântico, usando modernas técnicas de imagiamento e uma abordagem multidisciplinar. Michael Gross revela o método que está por detrás da "loucura".


Em resumo

  • Exames atentos de Imagiamento por Ressonância Magnética (do inglês, Magnetic Resonance Imaging - MRI) têm mostrado que o amor ilumina partes do cérebro relacionadas ao sistema de recompensa, as mesmas que são ativadas quando da ingestão de drogas.

  • O estágio inicial do amor romântico ativa partes diferentes do cérebro para o caso de mero interesse sexual e para o caso de vinculação afetiva.

  • Apaixonar-se parece fazer com que os níveis de serotonina no sangue sejam reduzidos, de modo similar ao que acontece quando de transtornos-obsessivos-compulssivos (TOC).

Cupido, o pequeno arqueiro travesso, pode estar à nossa volta nesse momento, mas há poucas evidências científicas para suportar o velho mito de que uma "flechada" sua faz com que as pessoas se apaixonem. Platão tem uma bela explicação, que hoje não resistiria a uma análise mais profunda, para argumentar sobre a perda da "outra metade". Portanto, se alguém tentar vender a você uma poção milagrosa, a exemplo do que teria sido feito com Tristão e Isolda, você não deverá esperar dessa poção qualquer milagre. [1]

O fenômeno romântico persiste e, conforme Helen Fischer, antropóloga da Universidade de Rutgers (EUA), é uma constante cultural universal, ou quase-universal. Não há sobre a Terra qualquer cultura humana, diz ela, que desconheça o fenômeno do amor romântico.

Se o fenômeno é universal, argumentam os cientistas, deve, então, haver uma base biológica que justifique sua existência. Em outras palavras, o amor romântico não pode ser simplesmente uma tradição cultural, tal como jogar críquete ou gostar de ópera. Recentemente, alguns pesquisadores deixaram corajosamente o medo natural que sentem de lidar com o lado irracional do ser humano e começaram a investigar os processos biológicos e químicos subjacentes ao amor romântico. Dedicaram-se em particular à ação dos genes, neurônios e mensageiros químicos tais como os hormônios e os feromônios.


A história dos ratos silvestres

Naturalmente, se algum tipo de fenômeno biológico é universal, logo encontrado ao longo de uma espécie, esperar-se-á que, de um modo ou de outro, esteja integrado nos genes. A dificuldade com o amor é que ele é um fenômeno complexo, controlado presumivelmente por interações complexas entre diferentes genes. Assim, seria muito difícil estudar o amor romântico, pelas mesmas razões que se aplicam às doenças multifatoriais, como aquelas do coração. Além disso, esbarra-se com a dificuldade - quando se trata de assuntos humanos -, de se ter que lidar com a ética, mormente quando da necessidade de manipulação genética, a qual seria requerida para explicitar as interações de muitos genes.

Assim, estudos genéticos sobre acasalamento e namoro têm, até aqui, estado limitados a animais e a questões relativamente simples. O mais espetacular e completo estudo sobre o assunto foi feito com duas espécies de ratos norte-americanos, os ratos silvestres monógamos de pradaria (Microtus ochrogaster) e os ratos silvestres montanheses, geneticamente modificados (Microtus montanus), os quais não constituem quaisquer laços, copulam ao acaso.

Os pesquisadores Thomas Insel e Larry Young, da Universidade Emory, Atlanta, Geórgia (EUA), descobriram uma inserção em um gene do rato monógamo de pradaria, a qual está suspeitamente ausente no rato polígamo montanhês.

Os estudiosos incorporaram o gene com a inserção no genoma dos ratos machos montanheses. Essa simples manipulação genética resultou na "cura" da promiscuidade desses roedores.

Mais recentemente, outro gene do sexo foi caracterizado na drosófila (mosca de frutas). Ken-Ichi Kimura e colaboradores, da Universidade de Hokaido (Japão), demonstraram que a proteína codificada pelo gene estéril da drosófila controla a construção de um circuito neural específico do macho, o qual tem papel fundamental no comportamento deste na corte, o que desloca nitidamente nossa atenção dos genes para neurônios e cérebro.


Verdadeiramente, loucamente, profundamente

Técnicas modernas de imagiamento do cérebro, tais como Imagiamento por Ressonância Magnética funcional (do inglês, fMRI) ou varredura magneto-encefalográfica (do inglês, MEG) abriram um novo mundo de possibilidades, dado permitirem aos pesquisadores observar o funcionamento do cérebro, sem causar transtornos ao paciente.

Helen Ficher uniu esforços com os pesquisadores americanos Arthur Aron, da Universidade do Estado de Nova Iorque, em Stony Brook, e Lucy Brown, da Escola de Medicina Albert Einstein, em Nova Iorque, para investigar as manifestações neurais dos estágios iniciais do amor romântico. Tiveram, basicamente, a intenção de estabelecer se o amor opera como uma emoção fundamental, tal como o medo, ou se é produzido pelo feedback de recompensa do cérebro, agindo de forma semelhante sobre os indivíduos habituados a ingerir cocaína.




Varredura do cérebro de pessoas apaixonadas, realizada pela técnica de fMRI, mostrando atividade nas mesmas regiões que aquelas apresentadas
quando do consumo de drogas.


Créditos - Lucy Brown / Albert Einstein College of Medicine, N.Y.


Os pesquisadores trabalharam com um universo de 10 mulheres e sete homens, que disseram ter estado apaixonados intensamente entre 1 e 17 meses, e os avaliou através de entrevistas, antes e após o estudo de fMRI. Durante o experimento de imagiamento foi mostrada a cada paciente uma foto de seu par romântico e pediu-se a eles que se recordassem de coisas carinhosas ligadas àquela pessoa. Como controle negativo foram mostradas a elas fotos de outros amigos e de membros da família e lhes foi solicitado que fizessem o mesmo.

Para purgar quaisquer sentimentos românticos, os assuntos giraram aleatoriamente em torno de um número variado de questões. (Tente esse procedimento se você precisar desanuviar seu cérebro de qualquer sobrecarga romântica, ele se mostrará eficiente em menos de 1 minuto).

Comparando as varreduras (do imagiamento), os pesquisadores puderam fixar várias regiões do cérebro que parecem estar envolvidas quando de intensos sentimentos românticos, mas não, por exemplo, através do reconhecimento facial. Registraram especificamente a ativação do mesencéfalo ventral direito, ao redor da assim chamada área tegmental ventral (do inglês, VTA) e o corpo do caudado dorsal e a ponta do caudado. Todas essas regiões não têm conexão com os instintos primitivos e emoções como o medo, mas estão relacionadas ao sistema de recompensa dos viciados em drogas.

Fisher, Aron e Brown, revisando seu próprio trabalho e comparando-o com outros a ele relacionados, concluíram que "o amor romântico é principalmente um sistema de recompensas, o qual leva a várias emoções, em vez de a uma emoção específica". Caracteristicamente não há qualquer expressão facial que possa denotar que se está inequivocamente apaixonado. Observaram também que, no estágio inicial, o amor romântico intenso é diferente de ambos: sexo e desenvolvimento de uma ligação nas fases posteriores de um relacionamento, as quais ativam diferentes áreas do cérebro.

Em estudo posterior, Fisher e seus colegas começaram a olhar para o que acontece quando o amor dá errado. "De alguma maneira, todos nós nos sentimos como que esvaziados", diz Fisher, assim, "quisemos ver o que acontece com o cérebro quando um apaixonado tem seu amor rejeitado".

Ela e seus colegas aplicaram a tecnologia de imagiamento do cérebro a um grupo de 15 voluntários, recentemente abandonados pelos parceiros. Dos resultados preliminares, Fisher concluiu que "muitas coisas acontecem no cérebro quando você olha a foto de alguém que recentemente o abandonou. Ocorrem, inclusive, atividades em regiões associadas à dor física, comportamentos obsessivo-compulsivos, raiva contida, etc., sendo ainda ativadas regiões que utilizamos quando estamos tentando "adivinhar" no que o outro está pensando". Longe de querer apagar as atividades do cérebro quando dos momentos prévios de felicidade romântica, Fisher acha que "parece que quando se é abandonado, embora que, de alguma forma, se rejeite o "ex", passa-se, por um bom tempo, a amá-lo mais intensamente".

Uma característica fundamental das áreas do cérebro que os pesquisadores americanos têm conectado ao amor romântico é que o par é envolvido de modo singular na trilha amorosa, usando o hormônio e neurotransmissor dopamina. Mas quais outros hormônios podem ser culpados pelas montanhas-russas emocionais do amor romântico?


Moléculas "in love"

Psiquiatra da Universidade de Pisa (Itália), Donatella Marazziti partiu para a investigação das mudanças hormonais ligadas ao transtorno-obsessivo-
compulsivo, antes de passar para os fenômenos que ocorrem quando as pessoas se apaixonam. Inicialmente, ela e seus colaboradores observaram um decréscimo na funcionalidade dos transportadores de serotonina no sangue dos voluntários enamorados, que tinham sido selecionados e classificados em uma escala de amor apaixonado (do inglês, passionate love scale - PLS). Como pacientes obsessivo-compulsivos, os voluntários "golpeados" pelo amor apresentaram uma concentração reduzida de serotonina no sangue, que poderia explicar o porquê da fase inicial do amor romântico poder se transformar em obsessão.

Marazziti, em seu mais recente estudo junto com o pesquisador Domenico Canale, também de Pisa, ampliou o leque para estudar as mudanças na concentração de vários outros hormônios, dentre eles estradiol, progesterona, dehidroepiandros-
terona e androstenediona, os quais pensou-se não serem afetados por quaisquer sentimentos românticos. Ao contrário, os pesquisadores observaram mudanças para cortisol, folículo hormônio estimulante e testosterona. Alguns efeitos mostraram-se gênero-específicos. Por exemplo, enquanto a testosterona apresenta, na mulher, um aumento quando esta é "golpeada" pela paixão, no homem, quando apaixonado, verifica-se uma redução.

Se os amantes jurarem um sentimento perpétuo, os hormônios poderão contar claramente uma história diferente. Re-testando os mesmos assuntos 12 - 24 meses depois, Marazziti e Canale observaram que as diferenças hormonais tinham desaparecido completamente, mesmo quando as relações permaneceram intactas.




Cupido com arco e flecha.

Crédito: Lanarte - Stitchability Ltd., Nantwich, Cheshire, England.


Usando o mesmo método para a seleção de voluntários, Enzo Emanuele e colaboradores, da Universidade de Pavia (Itália), investigaram se uma classe diferente de mensageiros químicos, as neurotrofinas, estaria envolvida na experiência romântica. No final de 2005, reportaram que a concentração do fator de crescimento neuronal (do inglês, NGF) no sangue excede os níveis normais em voluntários apaixonados, e que aumenta com a intensidade de sentimentos românticos como medido pelo PLS. Se mais NGF é necessário na fase inicial do romance, por conta de todas as experiências novas que são gravadas no cérebro, ou se ele tem uma segunda, ainda que desconhecida função na química do amor, deve ser investigado.

Emanuele e colaboradores também observaram que, após um ou dois anos, todas as moléculas do amor "desapareceram", mesmo que a relação tenha sobrevivido. Nem a intensidade inicial do PLS nem a concentração do NGF pareceram indicadores adequados para se saber sobre o destino da relação após aquele período.

Mas, se todos os mensageiros químicos de sentimentos românticos intensos desaparecem dentro de dois anos, o que é o "grude", a cola química que consegue manter - pelo menos alguns casais-, juntos ainda?


Ligação hormonal

Uma molécula-chave para a fase de união no relacionamento é o hormônio oxitocina, um nonapeptídio descrito pela primeira vez como a substância que induz trabalho e lactação. Mais tarde, uma segunda função foi encontrada para ele, como sendo também o "hormônio do afeto humano". Tal hormônio está relacionado ao hormônio vasopressina, que controla a função do rim, tendo também sido identificado quando os ratos silvestres de pradaria fazem uniões.

Experiências mostraram que, dependendo das espécies, qualquer um, ou ambos hormônios, podem fazer animais se aconchegarem. Foi observado que, nos humanos, a produção de oxitocina é alta quando do orgasmo feminino. Fora disso e de seu papel no parto, muito pouco era conhecido até o momento sobre o papel da oxitocina na psicologia humana e na psicologia geral.

Em 2005, vários grupos de pesquisadores relataram ter avançado nos resultados sobre o papel da oxitocina em humanos, relacionando o hormônio à socialização precoce, cognição social e confiança. Michael Kosfeld e seus colaboradores, da Universidade de Zurique (Suíça), mostraram que a aplicação de oxitocina, na forma de spray, por via nasal, tornou os participantes de um jogo de confiança, mais confiantes em relação aos outros participantes, mas não em relação a um computador. Esse resultado vai ao encontro das expectativas dos pesquisadores italianos. "Não estou surpresa com o resultado dos trabalhos de Kosfeld", disse Donatella Marazziti, que há pouco completou um estudo sobre o papel da oxitocina no amor romântico, mas manteve os detalhes em segredo.


As flechas do cupido

Finalmente, outra família de mensageiros químicos associados com o amor - os feromônios -, é ainda pouco conhecida em humanos. A maioria dos nossos conhecimentos deriva dos animais. Por definição, os feromônios são substâncias direcionadas para a comunicação. Seu uso em insetos é bem conhecido e armadilhas de feromônios estão comercialmente disponíveis para a proteção das colheitas contra o ataque dos insetos.

Nosso conhecimento sobre o papel dos feromônios em mamíferos é bastante incompleto, quase que deixando os humanos de lado. A maioria das pessoas pensa nos feromônios como sendo secretados por algumas glândulas, por exemplo, com suor, e que são reconhecidos presumivelmente por receptores localizados em uma parte muito pequena de nosso nariz, conhecida como órgão de Jakobson ou órgão vomeronasal (do inglês, vomero-nasal organ, VNO) [2]. Porém, foi somente em 2002 que pesquisadores puderam detectar alguns receptores de feromônios, supostamente mamíferos, em ratos.

Em outubro de 2005, o grupo de Hiroto Kimoto, da Universidade de Tóquio (Japão), acrescentou um surpreendente pedaço ao quebra-cabeça. Os pesquisadores mostraram que um feromônio não-volátil de rato, ao qual chamaram ESP-1 (do inglês, exocrine-gland secreting peptide), é liberado das glândulas lacrimais do rato macho e, depois, num contato face a face, ativa os receptores no VNO da fêmea.

Novamente não fica claro se as lágrimas masculinas têm efeito semelhante nas mulheres da espécie. Realmente, há uma controvérsia corrente sobre se o VNO humano é, de fato, parte do funcionamento de nossa fisiologia, ou se é uma relíquia da evolução mamífera. Parece que agora a evidência vem lentamente dando pró-VNO.

Para qualquer químico romanticamente inclinado seria profundamente prazeroso ser capaz de provar que mensageiros químicos comunicam sentimentos românticos entre humanos. Afinal de contas, esta é a única coisa que a ciência pode oferecer como uma analogia do mundo real para as flechas do cupido.


Nota do Tradutor

[1] Tristão e Isolda são personagens de uma lenda Arturiana, de origem exata desconhecida, muitíssimo popular na Idade Média e que ressurge no Século XIX. A lenda relata a história de um amor absoluto e perfeito entre os dois, com pesados ingredientes de tragédia e destino (veja mais em www.lunaeamigos.com.br).

[2] Fala-se bastante dos cinco sentidos do homem, contudo, um "sexto sentido", constituído pelo órgão vomeronasal, seria responsável pela recepção dos feromônios que, no ser humano, atuariam de modo inconsciente, condicionando os comportamentos sexuais do mesmo.


(Tradução e adaptação - MIA)


Nota do Managing Editor: este texto é de autoria de Michel Gross, science writer, residente em Oxford (Reino Unido), e foi primeiramente veiculado no site da Royal Society of Chemistry, em fevereiro de 2006. Apenas a primeira ilustração (imagiamento) faz parte do texto original. A segunda (Cupido) foi obtida em http://www.google.com.br/.


Veja mais:

Engana-se quem pensa que o deus Cupido nada tem a ver com a Ciência Química. A Royal Society of Chemistry lança luzes sobre o assunto.

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